O Crime Tributário estabelecido na LEI 8.137/90 e o tratamento dado pela lei de lavagem de capitais, LEI 12.683/12Voltar
27/04/2017
Tem-se visto com certa frequência um aumento considerável de investigações feitas pela Polícia Federal com supedâneo em pesquisas e resultados oriundos do COAF, Conselho de Controle de Atividades Financeiras, no que toca especificamente às transferências internacionais de valores.
Com efeito, a Lei 9.613/98, objeto de alterações pela Lei 12.683/12, não somente estabeleceu as hipóteses legais do crime de lavagem ou ocultação de bens como também criou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, COAF, dando-lhe potentes instrumentos fiscalizatórios para identificação das movimentações de valores.
Para o propósito a que se destina esse artigo, qual seja, a transferência internacional de valores, o crime de evasão tributária e o crime de lavagem ou ocultação de bens, tem-se que, através de instrumentos muito bem definidos na Lei 9.613/98, as instituições financeiras – mas não somente elas e sim todas as demais constantes do rol taxativo do art. 9º da Lei 9.613/98 -, ficaram obrigadas a fornecer ao COAF as informações constantes da movimentação financeira de valores.
Na prática e no ponto que nos interessa tem-se que couberam ás instituições financeiras, por lei, fornecerem ao COAF informações relacionadas às movimentações de seus clientes, e assim o fazem através de seus próprios instrumentos internos e de controle. Fornecem assim, a esse órgão, toda dinâmica e histórico das operações ocorridas mas não somente realizadas no seio da instituição como também aqueloutras que por razões diversas possam gerar algum indício de crime, por isso a atenção dispensada no inciso I, do art. 11 da Lei 9.613/98. Mais, as instituições deverão comunicar ao COAF, abstendo-se de dar ciência de tal ato a qualquer pessoa, inclusive àquela à qual se refira a informação a ser investigada (inciso II, do art. 11, da Lei 9.613/98), ou seja, a instituição financeira apenas comunica o fato ao órgão de fiscalização de movimentação financeira e não exige a lei que haja sequer a ciência á pessoa (física ou jurídica) que realizou a operação financeira. Em outras palavras, o detentor da operação financeira é fiscalizado sem que tenha ciência disso.
Assim se dá, grosso modo (e não pretendemos esgotar o tema), o iter da comunicação entre as instituições financeiras e o COAF.
Nos inquéritos policiais e investigações afins, além da investigação sobre o fato principal - a lavagem ou ocultação de bens -, outro é apontado, a averiguação de crime tributário - evasão de divisas. Vejamos parte do acordão proferido pelo TRF- 2ª Região, ACR 2705, 5ª Turma, Rel. Alberto Nogueira, DJU 05/04/2004, no ponto que trata do delito de evasão de divisas:
(...)
O artigo 22 e parágrafo único da Lei 9742/86 criminaliza a conduta: "Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País". Desta forma, dá-se a consumação quando o agente efetua a operação de câmbio não autorizada. Trata-se, portanto, de ilícito formal, consumado com a realização da conduta descrita pelo tipo, qual seja, a realização da operação de câmbio não autorizada. A evasão de divisas objetivada pelo agente representa mero exaurimento do ilícito, sendo irrelevante perquirir acerca da sua efetivação ou não.
(...)
A expressão “sem autorização legal" não está ligada à necessidade de prévio ato administrativo que expressamente autorize a operação, uma vez que o controle exercido pelo BACEN ocorre a posteriori, conquanto exige-se que a conduta contrarie ainda as normas regulatórias. O fundamento legal que define a “falta de autorização legal” encontra-se disposto no artigo 65 da Lei n.º 9.069/95.
E por aqui, se avizinham também dois conteúdos normativos que configuram o delito. O primeiro a conduta do caput e o segundo na primeira parte do parágrafo único ambos do art. 22, da Lei 9742/86.
Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País:
Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.
Assim, a operação de câmbio com o fim de transferência por sistema informal, por exemplo, configura o delito previsto no caput do art. 22, da Lei nº 7.492/86, enquanto a efetiva remessa fará incidir a primeira parte do parágrafo único do mesmo dispositivo legal, que é a evasão de divisas propriamente dita. Em tal caso, haverá progressão criminosa, devendo ser reconhecido crime único. (RE 876692/PR, Rel. Min. Carmem Lucia)
Em adição, Tigre Maia afirma que "o tipo objetivo incrimina a efetivação de operações de câmbio desautorizadas, quando efetuadas com o especial fim de agir de promover a evasão de divisas. Por evasão entenda-se a saída clandestina do país e por divisa qualquer valor comercial sobre o estrangeiro que permita a efetuação de pagamentos na forma da compensação"[1]
É muito comum nas investigações desse jaez as autoridades públicas, notadamente a Polícia Federal, com a concordância do MPF, solicitarem informações da Receita Federal acerca da operação de envio de importâncias ao exterior, buscando verificar se houve na operação de transferência internacional débito de imposto a pagar (IRPJ, IOF) ou não (caso por exemplo de remessa de lucros e dividendos a qual não incide o imposto de renda quando pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos pela pessoa jurídica a seus sócios ou acionistas domiciliados no exterior, ainda que em países com tributação favorecida). Também é requerido contrato de câmbio junto à instituição que operou a transferência.
Tais questões são fundamentais para aferir, com propriedade, se a operação de transferência de valores investigada foi tributada ou não. Mas mesmo na hipótese de não haver pagamento do tributo não se extrai a circunstância legal à conclusão de que a transferência efetuada ao exterior ocorreu ilegalmente, isto porque, através das investigações, quebra de sigilo bancário, informações da RFB, entre outras, poder-se-á chegar a conclusão de que a operação de fato existiu conquanto não foi realizado o débito tributário. Mas isso não significa que a operação tenha sido dissimulada ou teve contornos de ocultação de bens e direitos. A diferença é substancial:
Nas palavras de Carlos Marcelo Antonieto “o crime fiscal não pode decorrer do simples não pagamento de tributos, é necessária a existência de uma fraude, a utilização de um ardil capaz de induzir a administração tributária em erro com a finalidade de alterar a realidade da obrigação tributária”. Pode-se afirmar que em diversos casos o tipo penal de sonegação fiscal irá descrever um estelionato praticado contra o Estado com o fim de obter vantagem pelo não pagamento, ou pagamento a menor, de tributos:
“...quando o não pagamento dos tributos provém de um fato vinculado à fraude – como é o caso da adulteração dos livros fiscais ou da apresentação de declarações falsas -, então existirá omissão de pagar o tributo, originado de um ato positivo do querer humano, de caráter doloso, porque provém do engano, da desonestidade. O simples fato de não pagar tem como sanção a multa fiscal; a falta de pagamento proveniente de um ato ilícito tem pena mais grave, pois nos encontramos na presença do delito fiscal.” (RIOS, 1998, p. 29).
Assim, listamos as seguintes situações possíveis do fato jurídico:
A primeira, a operação de transferência de valores foi lícita, o fato jurídico tributário descrito na hipótese de incidência ocorreu, gerando no consequente da norma a obrigação de pagar o valor a título de tributo. Entretanto, não houve o pagamento do tributo.
A segunda diferença, a transferência de valores existiu, mas não ocorreu o pagamento do tributo, sendo que dos fatos apurados restou-se à conclusão da prática delitiva de lavagem de dinheiro. Nesse ponto, bifurcam-se ainda duas outras consequências. A primeira, no aspecto tributário, qual seja, a obrigação do fisco efetuar o lançamento do tributo. Feito, é exigido o tributo e o seu não pagamento pelo sujeito passivo o sujeitará aos efeitos da Lei 8.137/90. Se lançado o tributo o sujeito passivo vier a pagá-lo, extingue-se a obrigação. Ou ainda, tendo o fisco ciência do fato, mas por alguma razão acabou decaindo do direito de lançar o tributo, a obrigação tributária também se extinguirá pela decadência, uma das causas extintivas da obrigação tributária.
E quanto ao crime de lavagem? A questão tributária não irá interferir no crime de lavagem ou ocultação de bens. Isso porque, a luz do inciso II, do art. 2º da Lei 12.683/12, os crimes são autônomos e não guardam necessariamente relação entre si:
Art. 2º O processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei:
(...)
II - independem do processo e julgamento das infrações penais antecedentes, ainda que praticados em outro país, cabendo ao juiz competente para os crimes previstos nesta Lei a decisão sobre a unidade de processo e julgamento;
Por essa razão e ao que podemos deduzir, o legislador tratou o crime de evasão de divisas como antecedente ao de lavagem de dinheiro, incluindo-o assim em nova redação do inciso II, do art. 2º da Lei 12.683/12.
Por fim, podemos deduzir uma terceira possibilidade. A transferência de valores foi considerada ilícita, mas o sujeito passivo da obrigação recolheu o tributo regularmente, como se licita fosse a operação. Esse é um fenômeno que a doutrina denomina cláusula “non olet”[2] e para o direito tributário não importa a natureza da operação tampouco sua validade ou ilegalidade. O tema é polêmico e a doutrina ainda não tem definida uma linha, alguns defendem a sua tributação enquanto outros a rejeitam. A posição do fisco é desconsiderar os efeitos dos comportamentos ilícitos ou imorais, pois o transgressor – em regra – transforma recursos ganhos em atividades ilegais, o que vai em direção do entendimento do mestre Aliomar Baleeiro, quando, comentando o artigo 118, do CTN, assim disse:
"A validade, invalidade, nulidade, anulabilidade ou mesmo a anulação já decretada do ato jurídico são irrelevantes para o Direito Tributário. Praticado o ato jurídico ou celebrado o negócio que a lei tributária prescreve como fato gerador, está nascido a obrigação para com o fisco. E essa obrigação subsiste independentemente da validade ou invalidade do ato. Se nulo ou anulável, não desaparece a obrigação fiscal que dele decorre, nem surge para o contribuinte o direito de pedir repetição do tributo acaso pago sob invocação de que o ato era nulo ou foi anulado. O fato gerador ocorre e não desaparece, do ponto de vista fiscal, pela nulidade ou anulação".
Assim, o fisco não se importa se o fato gerador do imposto decorreu de fato lícito ou ilícito, de ato imoral ou não, de ato nulo ou anulável, delitivo ou não. A ocorrência do fato gerador e a consequente receita advinda da tributação encontra-se totalmente desvinculada das características do próprio fato tributado.
Nesse sentido é manifestação do Ministro do Supremo Tribunal Federal Sepúlveda Pertence no HC 77.530/RS:
“Sonegação fiscal de lucro advindo de atividade criminosa: "non olet". Drogas: tráfico de drogas, envolvendo sociedades comerciais organizadas, com lucros vultosos subtraídos à contabilização regular das empresas e subtraídos à declaração de rendimentos: caracterização, em tese, de crime de sonegação fiscal, a acarretar a competência da Justiça Federal e atrair pela conexão, o tráfico de entorpecentes: irrelevância da origem ilícita, mesmo quando criminal, da renda subtraída à tributação. A exoneração tributária dos resultados econômicos de fato criminoso - antes de ser corolário do princípio da moralidade - constitui violação do princípio de isonomia fiscal, de manifesta inspiração ética”.(grifamos).
[1] Dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. São Paulo: Malheiros, p. 133.
[2] Do latim, significa “não tem cheiro”.
Assim, em breve suma, podemos admitir nessa terceira possibilidade que a obrigação tributária resta extinta com o pagamento do tributo, mas não irá prejudicar as consequências criminais advindas da operação, se essa for considerada ilícita ou mesmo objeto de dissimulação, modalidade que constitui a base das atividades ilícitas envolvendo recursos provenientes de condutas contrárias ao ordenamento jurídico vigente no país.
Talvez essa seja a razão pela qual as autoridades públicas – Polícia Federal e ou MPF – nas investigações solicitam informações ao fisco federal a respeito da obrigação tributária decorrente da operação, pois não estaria somente em jogo a legalidade ou não dessa operação, mas sim a possibilidade de ter havido também algum crime fiscal, esse autônomo ou independente.
MARCELO RAYES
Sócio fundador – Rayes Advogados Associados