Excludente de responsabilidade civil do fornecedor de serviços sob o enfoque do fortuito externoVoltar

11/02/2015

Inicialmente é necessário traçar o conceito de responsabilidade civil sob a perspectiva doutrinária, dado seu sentido polissêmico e em muitas vezes divergentes em certos pontos.
 
Neste raciocínio de ideias Maria Helena Diniz (2009, p. 34) conceitua responsabilidade civil como:
 
“(...) a aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda ou, ainda, de simples imposição legal.”
 
Segundo Rui Stoco (2007, p. 114) a responsabilidade civil se define como:
 
“A noção da responsabilidade pode ser haurida da própria origem da palavra, que vem do latim respondere, responder a alguma coisa, ou seja, a necessidade que existe de responsabilizar alguém pelos seus atos danosos. Essa imposição estabelecida pelo meio social regrado, através dos integrantes da sociedade humana, de impor a todos o dever de responder por seus atos, traduz a própria noção de justiça existente no grupo social estratificado. Revela-se, pois, como algo inarredável da natureza humana”
 
Enfim o ponto crucial presente em todos os conceitos é o de regresso ao ‘status quo ante’, ou seja, de reparação do dano causado por ato humano culposo violador do dever legal ou contratual.
Ocorre que embora tais conceitos consagram a regra geral da teoria da responsabilidade civil moderna, a evolução histórica de seu conceito acompanhou os avanços tecnológicos e a multiplicidade das relações humanas espelhada nas inúmeras atividades que outrora inexistiam no mundo.
 
Desta forma fora criado o conceito de responsabilidade civil objetiva amparado sob a teoria do risco, prescindindo do elemento culpa, bastando para tanto o nexo de causalidade entre a conduta e o dano.
 
Nesta esteira de pensamento é a conceituação dada por Sérgio Cavalieri Filho (2008, p. 137):
 
“Todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou independente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de nexo de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa”.
 
O Código de Defesa do Consumidor ao tratar da responsabilidade civil do fornecedor e do fabricante, prescreve a ideia de responsabilidade sem culpa decorrente do risco da atividade:
 
“Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.”
 
“Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.”
Ocorre que esta responsabilidade civil, destacando-se neste estudo a do fornecedor de serviços, fundada no risco da atividade pode ser elidida pelas chamadas excludentes de responsabilidade caracterizada na lei consumerista pela prova de que o serviço posto a disposição do consumidor não é deficiente ou, ainda quando comprovado a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros e pela situação pouco discutida de fortuito externo, sendo este o enfoque deste artigo.
 
A excludente de responsabilidade civil pela ocorrência da situação de fortuito externo tem sua aplicação nas relações de consumo já que o rol das excludentes de responsabilidade civil previstas no Código de Defesa do Consumidor não é taxativo.
 
O fortuito externo é causa de extinção da relação causal, sendo assim ausente o dever de indenizar já que falta o elemento nexo causal entre a conduta e o dano para se aferir a responsabilização do agente.
 
Para caracterização do evento fortuito externo como excludente de responsabilidade civil é necessário a presença dos elementos inevitabilidade, irresistibilidade e externidade do fato.
 
É neste sentido que interpretando-se a recente súmula 479 do Superior Tribunal de Justiça a contrario sensu temos que a externalidade do caso fortuito é capaz de romper o nexo de causalidade entre a conduta e o dano elidindo inclusive a responsabilidade objetiva já que o risco neste caso não fora suportado pela organização e atividade da empresa.
 
O entendimento sumulado pelo STJ é assim ementado “As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiro no âmbito de operações bancárias”, ou seja, a responsabilidade cinge-se a conduta decorrente da teoria do fortuito interno ou do risco do empreendimento.
 
Ocorre que não raro se vê a responsabilização quase que integral das empresas por danos mesmo quando fora da órbita da atividade desenvolvida.
 
Neste passo o estudo do fortuito externo é a linha tênue que separa a objetivação da responsabilidade civil e a responsabilidade absoluta.
 
É assim que pela análise de recente acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo podemos analisar uma situação concreta em que a prática de estelionato ocorrido fora do estabelecimento e que causou prejuízo ao consumidor afastou o dever de indenizar onde os meliantes utilizaram-se de nome de instituição financeira para prática do crime, conforme reproduzido a seguir:
 
“INDENIZAÇÃO Dano material e moral Inexistência de comprovação da relação jurídica Alegação do requerente de ter sido coagido por funcionários da empresa requerida a efetuar vários depósitos prévios, para garantir a liberação do empréstimo principal Valores desembolsados que nunca foram restituidos, bem como empréstimo não liberado Sociedade empresária que desconhece os negócios efetuados, nem o contrato assinado pelo requerente, apresentando Boletim de Ocorrência noticiando ter sido vítima de estelionatários, que utilizam o nome da empresa para a prática de golpes Ausência de comprovação do nexo de causalidade Autor vítima de crime de estelionato Fortuito externo e fato exclusivo de terceiros que não se comunicam à própria atividade da empresa Sentença de improcedência mantida Recurso improvido. (...) Em que pese a alegação de responsabilidade por risco da atividade, respondendo a empresa por dolo ou culpa pela má prestação dos serviços, deve haver o nexo de causalidade para assim ficar possibilitado. Contudo, existem hipóteses legais em que, em virtude da cisão do nexo causal entre o evento e o dano, o prestador de serviços exime-se do dever de indenizar. (...) No presente caso, se verificou a existência de fortuito externo ou culpa exclusiva de terceiros, ou seja, fatos que não se ligam à própria atividade da empresa, uma vez que praticados por terceiros criminosos, se utilizando do nome da sociedade para a prática de crimes, sem que esta pudesse antever, antecipar ou impedir a prática de tais atos ilícitos.” (13ª Câmara de Direito Privado do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Recurso de Apelação n° 0038820-32.2010.8.26.0554, Relator Des. Heraldo de Oliveira. Julgado em 26.01.2012)
 
Em outras situações análogas a jurisprudência igualmente se posicionou:
 
“INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MATERIAIS E MORAIS. INADMISSIBILIDADE. ROUBO À MÃO ARMADA SUPOSTAMENTE PRATICADO EM ESTACIONAMENTO DE AGÊNCIA BANCÁRIA. FATO INEVITÁVEL E ALHEIO À ESFERA DE CONTROLE DO RÉU. AUSÊNCIA DE NEXO CAUSAL E DE ILICITUDE NO COMPORTAMENTO DO DEMANDADO. HIPÓTESE DE FORÇA MAIOR. ÁREA DA OCORRÊNCIA, ADEMAIS, EXTERNA À AGÊNCIA E SEM QUALQUER CONTROLE DE UTILIZAÇÃO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA REFORMADA. RECURSO PROVIDO.” (6ª Câmara de Direito Privado do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Recurso de Apelação n° 0015717-97.8.26.0564, Relator Des. Vito Guglielmi. Julgado em 31.03.2011)
 
RESPONSABILIDADE CIVIL. RECURSO ESPECIAL. CORREIOS. ROUBO DE CARGAS. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA. EXCLUSÃO. MOTIVO DE FORÇA MAIOR.
(...) omissis
2. Destarte, o caso dos autos revela o exercício de atividade econômica típica, consubstanciada na prestação de serviço de “recebimento/coleta, transporte e entrega domiciliar aos destinatários em âmbito nacional” de “fitas de vídeo e/ou material promocional relativo a elas”, por isso que os Correios se sujeitam à responsabilidade civil própria das transportadoras de carga, as quais estão isentas de indenizar o dano causado na hipótese de força maior, cuja extensão conceitual abarca a ocorrência de roubo das mercadorias tansportadas.
3. A força maior deve ser entendida, atualmente, como espécie do gênero fortuito externo, do qual faz parte também a culpa exclusiva de terceiros, os quais se contrapõem ao chamado fortuito interno. O roubo, mediante uso de arma de fogo, em regra é fato de terceiro equiparável a força maior, que deve excluir o dever de indenizar, mesmo no sistema de responsabilidade civil objetiva.
4. Com o julgamento do REsp. 435.865/RJ, pela Segunda Seção, ficou pacificado na jurisprudência do STJ que, se não for demonstrado que a transportadora não adotou as cautelas que razoavelmente nela se poderiam esperar, o roubo de carga constitui motivo de força maior a isentar a sua responsabilidade.
5. Recurso especial provido. (STJ, REsp. 976.564/SP, Relator Min. Luis Felipe Salomão. Julgado em 20.09.2012) (sic)
 
A característica de inevitabilidade e irresistibilidade que reside o conceito de fortuito externo diz respeito a impossibilidade absoluta de evitar ou resistir ao fato.
 
Neste ponto as lições de Pontes de Miranda conceitua caso fortuito como:
 
“(...) Não se trata de ser impossível evitar ou impedir o casus, mas sim os efeitos do casus. Não se alude a previsibilidade. O caso fortuito ou a força maior pode ser previsível. Se a impossibilidade já se caracterizara antes da conclusão do contrato, o contrato é nulo; se depois, regem os princípio sobre impossibilidade do adimplemento”  
 
Em sede de responsabilidade civil objetiva a quebra do nexo de causalidade como fator de exclusão do dever de indenizar pela ocorrência de caso fortuito somente é possível se este fator é externo à atividade de risco.
 
Esse ponto é bem distinguido nas lições de Josserand:
 
“Ora, os acidentes nascidos de causas tão diferentes não devem ser tratados igualmente e aqui aparece o poderoso interessa da distinção: o acidente fortuito ligando-se intimamente à empresa, contribuindo para a formação do risco profissional, deve ser suportado pelo industrial, assim como todo o dano inerente à direção que ele deu à sua atividade. Mas não pode ser assim em relação aos acidentes determinados por uma força maior, ou seja, por uma força exterior à empresa, sobre a qual o proprietário não pode exercer qualquer influência, pelos elementos, pela guerra ou pela violência organizada, por todos esses eventos que a lei inglesa reúne sob as expressões ‘fato de Deus ou dos inimigos da Rainha’. Esses eventos não tem nenhum relação com a empresa: o dano não foi verdadeiramente causado pela coisa, mas sim por uma força exterior, raio ou ciclone, tremor de terra ou pilhagem. O risco deve ser suportado por aquele que o criou e não por aquele que o sofreu: é sempre a mesma idéia que nos dita as conclusões. Ao impor ao proprietário a responsabilidade pelo risco criado, é, portanto, apenas o caso fortuito que a teoria objetiva lhe atribui”
 
Necessário se faz o combate as pretensões espúrias contra a atividade empresarial de consumidores vítimas da falta da segurança pública, pois, caso contrário estaríamos transferindo a responsabilidade do Estado ao empresário numa verdadeira responsabilização absoluta criada sob o fundamento da teoria do risco da atividade.
 
Se extrai deste contexto que se a conduta externa à atividade empresarial causar dano à outrem e se esta for para o fornecedor inevitável e irresistível, há o rompimento do iter de causalidade entre o comportamento de quem a lei ou o contrato responsabiliza pelos riscos da atividade e por isso inexiste o dever de indenizar.
 
CAVALHIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010.
 
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – vol. 7 - responsabilidade civil. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
 
JOSSERAND, Louis. “Da responsabilidade pelo fato das coisas inanimadas”. In: Revista Direito GV, v. 1, nº 1, São Paulo: Editora FGV, maio
2005
PONTES DE MIRANDA, Francisco Clementino. Tratado de Direito Privado. Tomo XXIII. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1958
 
STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 7 ed.. São Paulo Editora Revista dos Tribunais, 2007