Alterações dos artigos 215 e 216 do Código Penal promovidas pela Lei 12.015/09 Voltar
11/02/2015
A Lei 12.015, de 07 de agosto de 2009, alterou o Título VI da Parte Especial do Código Penal Brasileiro, que tratava “Dos crimes contra os costumes”, bem como modificou a Lei 8.072/90, que dispõe sobre crimes hediondos, e a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e revogou a Lei 2.252/54, que discorria sobre corrupção de menores.
Mister se faz ressaltar que a mudança não foi simples, não se restringindo em revogar algumas condutas típicas ou modificar os tipos penais já existentes. Nesse ponto, o Título VI da Parte Especial do Código Penal passou a vigorar com o nome de “Dos crimes contra a dignidade sexual”.
Antes de 2005, onde sofreu a primeira mudança, possuía uma redação preconceituosa, pois excluía as meretrizes da tutela penal. Com a Lei 11.106/05, foi corrigido esse erro.
Porém, ainda existia uma injustiça em relação ao pensamento moderno, o que tinha de ser tutelado não seria apenas a honra sexual, este valor perdeu força na nossa sociedade. Não que a honra sexual fosse algo sem importância, porém na época da redação original do código penal, a virgindade da mulher era algo indispensável para a composição de seu casamento e sua vida. Mulheres que não fossem virgens eram desvalorizadas na sociedade.
Sendo assim, mesmo após a mudança de 2005, o legislador achou por bem modificar novamente em 2009 com a Lei 12.015. Ele corrigiu a injustiça existente, pois o crime de estupro que só a mulher poderia ser sujeito passivo, tinha uma pena maior em detrimento da mesma conduta, porém com o sujeito passivo sendo um homem, que se enquadrava em atentado violento ao pudor mediante fraude.
Corroborando o exposto no parágrafo acima, assevera Guilherme de Souza Nucci:
“[..] a alteração do Título VI foi positiva, passando a constar “Dos crimes contra a dignidade sexual”. Dignidade fornece a noção de decência, compostura, respeitabilidade, enfim, algo vinculado à honra. A sua associação ao termo sexual insere-se no contexto dos atos tendentes à satisfação da sensualidade ou da volúpia. Considerando-se o direito à intimidade, à vida privada e à honra, constitucionalmente assegurados (art.5.°, X, CF), além do que a atividade sexual é, não somente um prazer material, mas uma necessidade fisiológica para muitos, possui pertinência a tutela penal da dignidade sexual. Em outros termos, busca-se proteger a respeitabilidade do ser humano em matéria sexual, garantindo-lhe a liberdade de escolha e opção nesse cenário, sem qualquer forma de exploração, especialmente quando envolver formas de violência. Do mesmo modo, volta-se particular atenção ao desenvolvimento sexual do menor de 18 anos e, com maior zelo ainda, do menor de 14 anos. A dignidade da pessoa humana (art.1.°, III, CF) envolve, por obvio, a dignidade sexual.[1]”
Dessa forma, o legislador colocou a dignidade sexual em um patamar a cima, indiferente em relação ao sexo da vítima. Tanto homem quanto a mulher podem sofrer o crime desse artigo que tem o nome de “violação sexual mediante fraude”.
Mister se faz ressaltar que a mudança não foi totalmente ilesa de deficiências, o legislador colocou na redação do artigo 215 que além do meio propriamente dito no titulo penal, a fraude, o crime pudesse ser cometido por “outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”. Essa inovação poderia causar certa dúvida.
Neste passo, indispensável foi analisar a doutrina e a jurisprudência, essa ultima que apesar de escassa, destacou bem a diferença e o ponto chave para que a conduta do artigo 215 não se confunda com a do artigo 217-A, “estupro de vulnerável”.
O ponto chave é a possibilidade resistência e o consentimento da vítima. Se fosses possível a vitima resistir, porém ela teve sua resistência alterada pelo meio que o agente utilizou e assim consentiu com o ato no momento, a conduta é do artigo 215, porém se a vítima possuía nível de resistência quase ou totalmente nula, e assim não deu consentimento, o artigo a ser enquadrada a conduta é p 217-A.
Corroborando com o exposto acima, a jurisprudência acena no mesmo entendimento, como o ilustre Desembargador José Ribamar Froz Sobrinho:
“PENAL. EMBARGOS INFRINGENTES. CRIME CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE VIOLÊNCIA REAL OU PRESUMIDA, INSUFICIÊNCIA DAS PROVAS E APLICAÇÃO DO ART. 215 DO CÓDIGO PENAL. RECURSO IMPROVIDO.
1. A embriaguez da vítima, bem como sua indignação e repudia ao ato sexual contra si praticado, são incontestes, ante as circunstâncias demonstradas nos autos e os depoimentos da própria vítima e das testemunhas.
2. A materialidade do delito de estupro e a autoria restaram devidamente comprovadas, tendo existido a conjunção carnal mediante violência presumida - em razão da embriaguez que impossibilitou o oferecimento de resistência -, se subsumindo a conduta do acusado aos preceitos do art. 213 do Código Penal.
3. Inobstante a revogação do art. 224, não houve descriminalização da conduta antes prevista, tendo ocorrido o fenômeno da continuidade normativo-típica, no qual, ante a repugnância do ato criminoso contra as vítimas ali descritas, deixou de tão-somente caracterizar a presunção da violência, para tipificar o delito de estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §1º, CP), com cominação penal superior ao do estupro (art. 213, CP).
4. Não houve subsunção das elementares previstas no art. 224, "c" nas previstas no caput do art. 215, no trecho "outro meio que impeça ou dificulta a livre manifestação da vítima", sob pena de perder eficácia o já citado art. 217-A, §1º, uma vez que, como dito, ele reproduz exatamente o mesmo conteúdo daquela alínea.
5. Os critérios distintivos entre o art. 215 e o art. 217-A, §1º está na análise da possibilidade de oferecer resistência e na consensualidade. Na hipótese da vítima não poder oferecer resistência está implícito que não consente com a ação (art. 217-A, §1º), por outro lado, quando há o impedimento ou dificuldade da livre manifestação da vontade (art. 215), a vítima, de certa forma, pode oferecer resistência, mas consente com a ação, porém, NÃO DE FORMA LIVRE, o que torna esse consentimento inválido. A aquiescência aqui é inválida porque embasada em falsa percepção da realidade, incutida dolosamente por outrem.
6. Unanimemente. Recurso Improvido.”[2]
Observou-se, ainda, que a legislação inovou e previu a pena de multa cumulativa a privativa de liberdade, caso o crime seja praticado com o fim de obter vantagem econômica.
Outrossim, atestou-se que, o crime tornou-se um crime comum, pois tanto o sujeito ativo quanto passivo pode ser qualquer pessoa. Consequentemente, qualquer pessoa poder ser coautor ou participe.
A possibilidade da tentativa nesse crime também sofreu uma adequação, pois houve unificação das condutas. Sendo assim, se a conduta for material, admitira tentativa, porém se a conduta for formal, não admitirá a forma tentada.
Por fim, constatou-se que pela revogação expressa do artigo 216, muitos se questionam sobre o abolitio criminis. Conforme foi demostrado, não existiu a abolição do crime, a conduta do artigo 216 não deixou de ter poder lesivo para a sociedade e esta integrada dentro do artigo 215.
Basta analisar o artigo 215 e constataremos que as ações antes necessárias para tipificar o artigo 216 estão presentes na nova redação, pois se o agente praticar qualquer outro ato libidinoso mediante fraude será considerado violação sexual mediante fraude.
Verificou-se que por outro lado, o reformatio in mellius ocorreu, pois os agentes que foram condenados em concurso material entre posse sexual mediante fraude e atentado violento ao pudor mediante fraude devem entrar com pedido de novo calculo de pena nos autos da execução penal.
Em relação a isso disserta Evandro Fabiani Capano:
[...] não houve abolitio criminis, pois as condutas anteriormente previstas nos arts. 215 e 216 do CP permanecem típicas e com potencial ofensivo à sociedade, não havendo, pois espaço para a aplicação do art. 2.° do Codex, sem embargo da possibilidade de entendimento da falta de identidade no objeto, na terminologia e no sistema instituído, o que conduziria a resposta inversa [...].[3]
Conseguimos perceber que a alteração foi benéfica e veio em boa hora, pois a redação dos artigos e a tutela deles estavam defasadas com a realidade dos valores da sociedade. Não havia cabimento o Código Penal tutelar valores desatualizados, pois ele perderá sua principal função.
Porem, na redação do artigo 215 o legislador tentou inovar e quase fez com que uma conduta estivesse tutelada duas vezes em artigos diferentes devido à redação mal elaborada.
E apesar de poucos casos práticos, essa conduta ainda não pode ser vista como decaída e ser excluída do Código Penal, como ocorreu com o adultério.
Além disso, devido à mudança ocorrida com o estupro não faria mais sentido manter os artigos 215 e 216 como eram antigamente. Muitos defendem a não intervenção do Estado, ou a intervenção mínima. Porém, nesse caso resta evidenciado que o Estado agiu corretamente adequando o Código Penal aos valores da sociedade.
Não existia motivo para que o homem que sofresse a mesma conduta que a mulher não fosse tutelado pela mesma pena. Atualmente, a diferença entre a posse sexual mediante fraude e o atentado violento ao pudor não poderia se ater a sexualidade da vítima.
Claro, não podemos esquecer que condutas menos ofensivas que a conjunção carnal, realmente podiam não ter o mesmo poder ofensivo, porem a atitude do legislador de consolidar em uma mesma tutela foi positiva, pois em sua grande maioria algumas ações acarretam em outras e o agente que fosse impedido por motivo alheio a sua vontade poderia se beneficiar dessa diferença.
Sendo assim, a conduta foi completamente incorporada e transformada em uma só, e dessa forma se adaptou o Código Penal a necessidade dos tempos atuais.
Conclui-se, portanto, que o Estado brasileiro interviu de maneira correta na mudança da Lei, adequando as condutas com o momento atual da sociedade e protegendo a dignidade sexual como um bem jurídico maior que a honra propriamente dita.
[1] NUCCI, Guilherme de Souza. “Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei 12.015/09, de 7 de agosto de 2009”, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais p. 14, 2010.
[2] Tribunal de Justiça do Maranhão. Acórdão Nº 88.034-2009, Embargos Infringentes N.º 002969-2010, Data do julgamento: 23 de julho de 2010. Data do registro do acordão:30 de julho de 2010. Relator: JOSE RIBAMAR FROZ SOBRINHO
[3] CAPANO, Evandro Fabiani. “Dignidade sexual: comentários aos novos crimes do Título VI do Código Penal (arts. 213 a 234-B) alterados pela Lei 12.015/09”, p.56.