A sucessão empresarial em razão do objeto social e as dívidas contraídas e não pagas Voltar
11/02/2015
A doutrina e a jurisprudência pátria tratam da desconsideração da personalidade jurídica de forma nítida: pode ocorrer sempre que esta venha a ser utilizada para fins fraudulentos ou diversos daqueles para os quais foi constituída, permitindo que o credor da obrigação assumida pela pessoa jurídica alcance o patrimônio particular de seus sócios ou administradores para a satisfação do seu crédito[1].
Com certa frequência temos visto empresas fraudando credores a torto e a direito a partir do instante em que suas dívidas acabam se avolumando a um nível desproporcional ao poder de solvência do devedor, ocasião em que acabam serrando suas portas e transferindo seu parque produtivo a um terceiro estranho à relação societária. Entretanto, por vezes essas acabam mantendo a mesma clientela, representação comercial, produtos e até vendas atreladas ao mesmo canal de expansão. A diferenciação acaba se resumindo, quase sempre, na localização de seu parque produtivo e na figura do sócio, distinto da empresa anterior.
Mas a dificuldade maior cinge-se a comprovação de que a empresa “nova”, no fundo, é a mesma da “velha”, situação em que esbarra no quase instransponível fato relativo ao quadro societário, às vezes marca e em igual proporção localização do parque industrial, todos distintos da anterior empresa. E quando isso ocorre, infelizmente, dificulta-se em demasia a comprovação da fraude aos credores.
Um dos fatos que podem decisivamente corroborar a causa em favor do credor que busca seu crédito está ligado à atividade da sociedade fraudulenta. Se tal atividade for mal administrada, dando azo ao seu encerramento irregular – logicamente, através das provas carreadas aos autos – a finalidade de fraudar credores fica evidente, razão pela qual a personalidade jurídica fica desconsiderada, o que inexoravelmente alçará a divida no patrimônio do devedor[2].
Entretanto, mesmo com essa medida, em nada garante que o patrimônio do devedor tenha bens suficientes para saldar a dívida, transpassada agora, em seu nome. Para os fins desejados, pode o devedor não ter bens para o pagamento da dívida e tal situação não resolve efetivamente o crédito buscado pelo (talvez impaciente) credor.
A possibilidade de solvência do crédito reclamado teria lugar, nesse caso, na comprovação nítida da sucessão empresarial, pois será naquela “nova” empresa que o crédito deverá recair e a obrigação por lá persistir. Mas para isso a matéria de prova nos autos deve ser inconteste, não guardando a mínima dúvida ao julgador.
E foi isso que recentemente ocorreu num processo de execução[3] decidido no Poder Judiciário paulista, em favor de cliente de nossa Banca.
Uma empresa firmou com outra um termo de confissão de dívida e plano de pagamento em doze parcelas mensais. Acabou solvendo apenas duas. A credora manejou ação de execução por quantia certa contra o devedor. Após sucessivas investidas contra o devedor, todas infrutíferas, a execução foi remanejada para o sócio da nova empresa, tendo sido devidamente citada. O executado não ofereceu sequer embargos – muito provavelmente em razão do estado de insolvência de seu patrimônio pessoal ,no qual sequer um bem existia.
Dessa forma, parece ter sido aquilo o “fim” anunciado do dilema do credor, que havia confiado seu negócio a um parceiro, agora, quedado inerte. Em considerável parte das vezes tais créditos acabam caindo na vala comum da “provisão para os devedores duvidosos”, conta que as empresas conhecem muito bem.
Mas não foi esse o fim esperado. O credor não se deu por vencido e conseguiu provar nos autos que havia ocorrido, posteriormente à assunção da dívida através do termo de confissã, a transferência do parque fabril da empresa “velha” para a “nova”. Mais, a “nova” empresa possui até o mesmo representante comercial da anterior, fabricava os mesmos produtos para os mesmos clientes, tendo, inclusive, os mesmos fornecedores. Tal circunstância criteriosamente foi comprovada nos autos, tendo assim o juiz de direito decidido:
Trata-se de pedido de reconhecimento de sucessão de empresas, bem como declaração da desconsideração inversa da personalidade jurídica, pleiteado pela Exequente (...).
Sustenta, em apertada síntese, que as atividades da empresa executada (...) foi transferido para outra empresa denominada (...), que tem como titularidade a esposa do responsável pela Executada, Sra. (...), que tem como objeto social a mesma atividade da Executada e endereço vizinho. Face a esses aspectos fáticos, requereu tal reconhecimento da sucessão entre as empresas.
Com efeito, a sucessão de empresas ocorre quando há transferência do estabelecimento empresarial, entendido como o conjunto de bens materiais, como mercadorias, máquinas, imóveis etc., bem como, imateriais, como marcas, patentes e ponto comercial, organizados para a exploração da mesma atividade econômica, nos termos do art. 1.142 do Código Civil. Admite-se sua presunção quando os elementos indiquem a mesma exploração da atividade econômica, com o mesmo objeto social etc., atingindo, inclusive, a mesma clientela já consolidada pela empresa sucedida. No caso em tela se verifica a ocorrência da sucessão das empresas, senão vejamos. É que, pelas tentativas de bloqueio "on line" tanto pelo CNPJ da empresa (...), como pelo CPF do sócio (...), não se obteve êxito, o que comprova que empresa e empresário não possuem ativos financeiros a movimentar, o que causa, no mínimo, estranheza já que por instrumento de confissão de dívida acostado a fls.14/16, a executada confessou dívida e comprometeu ao pagamento mensal na faixa média de R$ (...).
De outra feita, a própria empresa (...), por ocasião da manifestação e documentos apresentados a fls.110/136, confirma que sua proprietária (...) é casada com o proprietário da empresa Executada desde 23.11.2002. Nota-se que, embora negado pela referida empresa a sucessão, confirma que os objetos dos contratos sociais são os mesmos, quais sejam, a indústria e comércio de calçados, portanto, mesma finalidade. Não é só, conforme manifestado a fls.114/115 a empresa também confessa que o Sr. (...) prestou serviços como representante comercial para as empresas, confirmando a declaração de fls.80.
Os termos da declaração de fls.80, não rechaçada, deixa claro que as atividades das empresas são as mesmas, com mesmos objetivos, tanto que possuíam o mesmo representante comercial. Nesse contexto acolho o pleito de fls.66/70 de modo a reconhecer a sucessão das empresas e, em consequência, declaro a desconsideração inversa da personalidade jurídica para determinar a penhora em bens pertencentes a empresa (....), inscrita no CNPJ (....), com endereço a fls.70.
Defiro a inclusão desta empresa no polo passivo da ação.
Defiro ainda a penhora da ordem de 20% (vinte por cento) do faturamento dessa empresa.
Nomeio como administrador para elaborar um formato de administração, esquematizar os pagamentos ao credor e prestar contas periodicamente a respeito dos procedimentos e resultados do exercício de sua incumbência, nos termos dos artigos 678, parágrafo único, primeira parte, 148 a 150 e 728, I e III, do Código de Processo Civil, o Sr. Perito contábil (...), o qual deverá estimar seus honorários periciais. Pela presente, fica autorizado o perito a entrar e permanecer no interior da empresa para os fins da perícia, bem como ter acesso aos livros necessários para o desempenho de seu mister.
O mais interessante nesse caso foi o fato de que, independentemente da distinção do quadro societário, a sócia da nova empresa era casada com o executado da “velha” bem como a circunstância relativa ao objeto social: ambas fabricavam calçados. O juiz inclusive desprezou outras provas que poderiam ter sido avaliadas, eis que devidamente comprovadas nos autos, tais como: fotos dos produtos com as características muito parecidas em ambas as empresas; mesma identidade de clientela e fornecedores. Todas essas provas corroboraram para a desconsideração inversa da personalidade, fato que ensejou na penhora de 20% do faturamento mensal da empresa sucessora.
[1] Código Civil Comentado | Nelson Nery Junior, Rosa Maria de Andrade Nery – 6ª Edição, nota 2, art. 50, página 249.
[2] TJSP – RT 711/117.
[3] Processo nº 0018065-23.2012.8.26.0196.